Por que condenam Cristina Kirchner? Guerra judicial e crise democrática.

O poder judicial, longe de ser independente, tornou-se um instrumento a serviço do poder real.

Por Emília Trabucco*

A sentença em segunda instância contra Cristina Fernández de Kirchner no “caso Vialidad” será anunciada nesta quarta-feira, 13 de novembro. A audiência está prevista para iniciar às 11 horas. A decisão foi tomada pelos juízes Gustavo Hornos, Mariano Borinsky e Diego Barroetaveña nos tribunais de Comodoro Py, e foi anunciada no último 7 de outubro, mesmo dia em que Cristina confirmou a sua candidatura à presidência do PJ – Partido Justicialista.

Este processo judicial, um dos muitos a que responde, e repleto de irregularidades, faz parte de um plano sistemático de perseguição com um objetivo claro: desarticular a sua centralidade na política argentina e desativar qualquer possibilidade de uma alternativa popular no país. Faz parte da estratégia de Lawfare (ou guerra jurídica), uma das faces da guerra multidimensional implementada pela extrema-direita para eliminar seus opositores e garantir a consolidação de um regime neoliberal, fascista e autoritário, que vem ganhando espaço no mundo, que vive um clima de “insatisfação democrática”.

O caso “Vialidad” foi, entre as muitas operações, o pontapé para vincular a ex-Presidenta a corrupção, apesar da óbvia falta de provas: de maio de 2019 a dezembro de 2022, as testemunhas não a mencionaram diretamente e não foram encontradas provas que a ligassem às acusações. Este julgamento foi apontado como uma “farsa jurídica”, um julgamento de fachada sem fundamento destinado a banir politicamente, tal como denunciado pela ex-presidenta.

Este ataque faz parte de um fenómeno mais vasto que não se limita à Argentina. O lawfare também tem sido uma ferramenta utilizada contra outros líderes populares da região, como Lula da Silva no Brasil ou Rafael Correa no Equador, e procura impedir aqueles que representam uma alternativa ao modelo econômico neoliberal. Neste sentido, o processo contra Cristina Kirchner e a campanha de ódio que o acompanha visam impedi-la, enquanto líder do movimento popular, de poder voltar a candidatar-se ou a desempenhar um papel de liderança na política argentina; é isso que a condenação implica de fato, a proibição do exercício de cargos públicos.

O ano de 2022 marcou um ponto de inflexão nesta perseguição com a tentativa de assassinato de Cristina. No dia 1° de setembro, um homem apontou uma arma a menos de 15 centímetros da sua cabeça e disparou sem que a bala saísse. Um atentado que deixou claro que a violência na Argentina tinha voltado a ser uma arma política. No entanto, em vez de investigar as possíveis ligações entre este atentado e setores da extrema-direita, os meios de comunicação e a justiça relativizaram o acontecimento, apresentando Sabag Montiel, o agressor, como um “louco à solta”. Não faltou o papel da grande imprensa, onde a capa do jornal Clarín: “a bala que não saiu e a sentença que sairá” foi o exemplo paradigmático da operação. Os fatos reforçam a hipótese de que o atentado fazia parte de um plano mais amplo orquestrado por setores reacionários do poder, incluindo a família Caputo, a atual ministra da Segurança, Patricia Bullrich, o deputado Gerardo Milman, entre outros, que gozam de total impunidade.

A chegada de Milei à presidência em dezembro de 2023 aprofundou esta perseguição, alinhando-se com a direita na região, procurando consolidar um projeto de recortes, repressão e privatização. Este programa da extrema-direita, que encontra aliados em setores do poder judicial e nos poderes econômicos financeiros que também controlam as plataformas digitais, representa uma ameaça concreta aos direitos das camadas populares. Neste contexto, Cristina Fernández de Kirchner torna-se não só uma líder política, mas também uma figura de resistência à ofensiva neo-fascista e neoliberal.

Como a própria Cristina adverte: “O objetivo é apagar da história todos aqueles que possam representar uma ameaça ao status quo”. É um fato reconhecido tanto pelos seus inimigos declarados como por setores que se dizem parte do peronismo e que representam fogo amigo contra Cristina, como o demonstraram alguns dos que estão na corrida à presidência do Partido Justicialista, determinados a tentar resolver disputas internas no poder judicial, território historicamente inimigo.

Cristina, neste contexto, representa não só o seu próprio movimento, o kirchnerismo, mas também uma alternativa política com capacidade para se opor ao plano de fome e miséria da extrema-direita contra o povo trabalhador. Durante seus dois mandatos como Presidenta da República, garantiu que os salários dos trabalhadores argentinos estivessem entre os mais altos da região e promoveu políticas que aproximaram o PIB nacional dos 51% na luta distributiva com o setor empresarial. A sua rejeição das políticas do FMI e a sua denúncia do acordo assinado em 2022, que condena o povo argentino à pobreza e à fome, são exemplos claros do seu compromisso com o projeto das grandes maiorias populares.

Mas o ataque contra ela não é apenas um ataque político, é também um ataque à própria democracia. Como vice-presidenta, Cristina denunciou a ilegitimidade do empréstimo do FMI, pôs em evidência a contradição entre o crescimento econômico que beneficia poucos e a exclusão da grande maioria da população desses benefícios. Este questionamento das elites econômicas e políticas é a verdadeira força motriz da ofensiva judicial e midiática contra ela. Como afirma Cristina, “já tentaram muitas vezes eliminar os direitos na Argentina. Comer quatro refeições por dia não é uma questão ideológica, nem ter um bom salário, ter uma casa digna para viver, garantir boa educação para os filhos. Não é populista. É algo que está no DNA argentino”.

Este ataque refletiu-se na campanha midiática e nas redes sociais, intensificado pelo fato de se tratar de uma mulher.  Um relatório do Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica – CELAG de maio de 2024 revela que a palavra “Cristina” aparece em 50% das capas do Clarín e do La Nación, e que três em cada quatro menções ao seu nome são negativas. Além disso, o poder judicial, que Cristina descreveu como “a organização política central” do século XXI, continua a utilizar o aparelho judicial para torná-la inelegível. Os juízes por trás do caso Vialidad, Gustavo Hornos e Mariano Borinsky, têm ligações comprovadas com o ex-presidente Mauricio Macri, o que lança mais dúvidas sobre a imparcialidade dos processos.

O cenário judicial é alarmante. Em setembro, a Câmara de Cassação divulgou a sua intenção de confirmar a sentença de seis anos de prisão para Cristina. A confirmar-se esta decisão, Cristina estaria numa situação semelhante à de Carlos Menem no caso do contrabando de armas para a Croácia e o Equador, embora neste caso o Supremo Tribunal tenha decidido a favor de Menem. A possibilidade de um recurso extraordinário para o Supremo Tribunal mantém a porta aberta a uma mudança, mas o calendário judicial é incerto e a situação política no país é ainda mais complicada pela influência da corrente Macrista no seio da mais alta corte do país.

A crise da democracia argentina é inegável. O poder judicial, longe de ser independente, tornou-se um instrumento ao serviço do poder real. Cristina, no entanto, continua a ser a peça-chave que articula a resistência popular. Como ela mesma advertiu, “a verdadeira justiça só se constrói quando o poder está nas mãos do povo”. A sua centralidade na política argentina não é apenas a de uma líder; é a de uma referência de um projeto de justiça social que não se rendeu perante o avanço do fascismo e da violência que tenta eliminá-la do cenário político.

A questão que se coloca é a capacidade do campo popular de enfrentar a ofensiva judicial contra aquela que encarna a possibilidade de materializar um programa de justiça social, ainda mais no caso de a sentença ser confirmada e de, esgotadas as instâncias de recurso, decidirem aplicar a pena de 6 anos de prisão a alguém cujo maior crime é não se submeter a ser “mascote do poder”.

Neste sentido, o povo argentino encontra-se numa encruzilhada histórica. Diante do avanço de um regime que concentra o poder nas mãos das elites e avança na repressão às dissidências, a unidade popular e a construção de uma verdadeira democracia participativa são mais necessárias do que nunca. A mobilização popular e a organização das classes trabalhadoras serão fundamentais na defesa de Cristina Kirchner, e nela, a possibilidade de rearticular um projeto de país com capacidade de se opor ao fascismo, enfrentando os desafios de uma transformação absoluta das regras do jogo político no século XXI.

Emília Trabucco (*) é psicóloga com mestrado em segurança nacional. Analista da Agência NODAL e do CLAE Argentina. Diretora de Área de Universidade, Género e Trabalho do Instituto de Estudos e Formação da Federação Nacional de Docentes Universitários IEC-CONADU. Texto de opinião publicado originalmente em Rádio Gráfica

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